O CEROL

O CEROL

Haroldo Figueira. 

Óbidos me traz, sempre, boas lembranças. E nem podia ser diferente. Os melhores anos de minha vida ou, para ser mais preciso, o período que vai desde que me entendo por gente, até o nascimento de minha primeira filha, eu o vivi lá. Tenho, portanto, muitas recordações guardadas a evocar. De vez em quando uma me vem à mente.

Hoje, por exemplo, me peguei pensando, mais uma vez, no empino de papagaios – tema sobre o qual já escrevi a respeito em outra oportunidade e ao qual retorno, agora para abordá-lo sob outro enfoque. Tratava-se de umas das brincadeiras infantis que eu mais apreciava. Não só pelo prazer de ver aqueles objetos feitos com papel de seda colorido, alguns confeccionados por mim mesmo, dançando no ar, mas também porque me aprazia agitá-los em movimentos serpenteantes, embicando-os quase até o chão, para em seguida fazê-los subir e ganhar altura.

O que deixava o folguedo mais empolgante, contudo, era o “lancear” que, na linguagem regional “papagaiês” significava disputar para ver quem, entre dois contendores, ao cruzar os barbantes de sustentação embebidos em cerol – substância cortante feita à base de cola de madeira derretida e vidro moído –, conseguia seccionar por primeiro a linha do outro, promovendo a queda do papagaio do adversário.

Fazia parte do jogo um componente adicional. Para o bom lanceador, não bastava apenas “cortar” o papagaio do competidor. A façanha completava-se quando o vencedor além de derrubar o objeto da competição, não deixava que este fosse ao chão, aparando-o em plena queda e trazendo-o até si para exibi-lo como troféu. Essa manobra era conhecida como “cortar e aparar”.

Como em toda disputa esportiva, os melhores eram enaltecidos pelo público aficionado. Havia, na minha época, alguns bons lanceadores: Xarão, irmão do Merunga, os irmãos Domingos e Benito Savino, etc. Existia um, porém, que se destacava entre os demais. Esse era considerado imbatível. Tratava-se do Wander, filho de seu Ataulfo. A explicação para a o sucesso de seu desempenho residiria, segundo especulações dos “papagaieiros” de então, na fórmula do cerol que utilizava e que ele fazia questão de manter em segredo.

Falar disso me fez aflorar de repente à memória um mico que minha turma e eu pagamos. Integrava meu círculo de amigos de infância uma pessoa com quem o grupo se dava muito bem. Tratava-se de um bom companheiro, mas que tinha por hábito mentir descaradamente. Omito seu nome, pois já não encontra entre nós. Morreu jovem, de uma morte trágica, por sinal. Pois bem, esse parceiro chegou alardeando, certa vez, que descobrira o segredo do cerol do Wander que o teria revelado para ele. Como moravam próximos, achamos que, dessa vez, talvez estivesse falando a verdade.

Embora relutantes no início, rendemo-nos aos seus argumentos. Até porque se dispunha a participar ativamente das ações relacionadas com as histórias mirabolantes que contava. No episódio do suposto cerol de “legítima” procedência, criado por sua imaginação fantasiosa, ele se superou. Pôs literalmente a mão na massa, ajudando-nos a elaborá-lo.

Eis a receita que nos repassou: cola, goma de tapioca, vidro (tinha de ser daqueles de cor azul escuro, usado como recipiente de leite de magnésia) pilado no almofariz (pilão de mesa de metal destinado a triturar temperos), gotas de ácido fênico (utilizados como antisséptico por dentistas da época) e, pasmem... cocô de galinha.

A despeito da bizarrice da composição, seguimos o receituário. Besuntamos nossas linhas com a mistura cortante e entramos confiantes na peleja aérea. Para nossa decepção, fomos facilmente abatidos. E pior, quem derrubou nossos papagaios não era nenhum craque na arte de lancear, mas um empinador qualquer, sem fama, sem tradição. A experiência resultou em um retumbante fiasco! Tanto trabalho, tanto empenho (inclusive tendo de vencer o nojo de manusear titica), tanta expectativa de triunfo, para nada.

Só bem mais tarde a ficha caiu e nos demos conta de que havíamos sido ludibriados. Não nos revoltamos com o papel de otários, até pelo tempo transcorrido desde que o fato ocorreu. Aceitamos o episódio com bom humor. Afinal, éramos crianças e, nessa fase da vida, a ingenuidade e a credulidade são comuns. Deu para presumir, também, que a causa de nossos brinquedos terem ido ao chão de modo tão rápido foi o ácido fênico contido na fórmula do falso cerol. Em contato com as linhas, a substância deve tê-las corroído, enfraquecendo-as.

A amizade com o nosso parceiro mentiroso continuou. Só que agora, ressabiados, não embarcávamos facilmente nas lorotas que contava.   Hoje, ao revisitar o passado e me fixar na figura desse comparsa de incontáveis aventuras infantis percebo que, tirante o cacoete de faltar com a verdade, era um cara divertido, de quem sinto saudade. Lamento seu prematuro passamento e, vez por outra, rezo pelo descanso de sua alma.

Comentários  

0 #4 Haroldo Figueira 30-04-2021 18:19
Obrigado pelo incentivo, João.
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0 #3 Haroldo Figueira 30-04-2021 18:17
Obrigado, Edinalda, bondade sua.
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0 #2 Edinalda Dantas 30-04-2021 15:15
Parabéns pelo artigo,Haroldo, inteligentissimo! Escritor nato
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0 #1 João F Canto 18-04-2021 22:09
Excelente Artigo
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